Milton Nascimento e a máquina de fazer emoções

Este texto é uma não-resenha do show do Milton, encerrando a turnê A Última Sessão de Música, e marcando sua despedida dos palcos após 60 anos de carreira, no Mineirão.

O que me levou ao último show da carreira do Bituca foi o desejo de sentir.

Sem pensar duas vezes, comprei meu ingresso sem nem saber quem eu teria como companhia. Decidi que iria, sozinha ou não, porque já me amargava demais ter perdido a despedida do Clube da Esquina alguns anos antes.

Eu queria trocar esse amargor, em muito vindo por não ter entoado “Maria, Maria” em um estádio lotado, por outra coisa; pelo sentimento de ter vivido a experiência de ver Milton Nascimento ao vivo, aproveitando a última oportunidade que me foi lançada.

O show começou em meio à lágrimas para o próprio Bituca e para muita gente. Poucos dias antes, perdemos Gal Costa. O último show dela foi dedicado a ele, e ele retribuiu o carinho, como anunciado logo no início.

Confesso a você que são poucas as músicas do Milton que eu canto a plenos pulmões. Há algo mais forte do que a vontade de cantar que me convida à pura contemplação. É que, embora talvez não pareça, as músicas de Bituca foram feitas para grandes espetáculos.

Acho que costuma ser assim quando há espaço para multi-instrumentos e uma confluência de ritmos que evocam as mais variadas raízes do povo que habita esta nossa terra chamada Brasil. O que, claro, só funciona bem quando a voz que amarra tudo isso é aquela que poderia ser a voz do próprio Deus.

Imagem com a frase "Se Deus cantasse ele cantaria com a voz de Milton"
Frase atribuída à maravilhosa Elis Regina

Aos 80 anos, embora o corpo físico esteja claramente enfraquecido, Bituca não perdeu a potência de sua voz. Com esforço sereno, fez seu canto ecoar para as mais de 60 mil pessoas que foram ao Mineirão: um gigante sendo palco do outro, vale dizer.

Durante cerca de duas horas e meia, sobretudo enquanto eu não cantava, eu observava e sentia. Peço-lhe desculpas por dizer que, por vezes, pensei na finitude da vida e no privilégio de celebrá-la no durante, e não tão somente no depois.

Talvez eu tenha sido impactada por uma semana de perdas na cena cultural nacional, somando isso ao tom derradeiro que o último show de uma turnê de despedida inevitavelmente tem. Na música, sem dúvidas, Bituca cumpriu sua missão e o fez como poucos.

Com tudo isso em mente, imersa em uma atmosfera inédita para mim (eu nunca vi nada parecido), eu reparava nas pessoas. Ao meu redor, dezenas choraram, enxugaram as lágrimas, sorriram e choraram de novo. É a vida.

Todos os dias é um vai-e-vem / A vida se repete na estação / Tem gente que chega pra ficar / Tem gente que vai pra nunca mais / Tem gente que vem e quer voltar / Tem gente que vai e quer ficar / Tem gente que veio só olhar / Tem gente a sorrir e a chorar / E assim, chegar e partir

São só dois lados / Da mesma viagem / O trem que chega / É o mesmo trem da partida / A hora do encontro / É também despedida / A plataforma dessa estação / É a vida desse meu lugar / É a vida desse meu lugar / É a vida

Pode ser que você tenha levantado suspeita, caso já tenha lido valter hugo mãe. O título desta não-resenha faz referência direta à máquina de fazer espanhóis, livro do escritor português que reflete sobre o envelhecer, as dores e fraquezas humanas, o comum e o que há na vida.

De comum, Bituca não tem quase nada, exceto toda sua humanidade ainda que, por vezes, pareça muito mais do que isso. Achei inevitável não pensar o tempo todo sobre como eu estava ali testemunhando o desfecho de uma trajetória musical de uma vida inteira.

Foto de Milton no show. No centro do palco, ele está centado com a sanfona no colo e vestes coloridas. Ao seu redor, estão os músicos da percussão com baquetas para o ato. Parece um ritual de culto ao Milton
Marcos Hermes / via instagram @miltonbituca

Achei inevitável não pensar na fragilidade física habitada por alguém que já é, há anos, um imortal caminhando pela Terra; um ancião da nossa cultura. Já reparou no quão bonito isso é? Vejo uma beleza imensa naquilo que aproxima nossos ídolos de nós.

Me faz pensar que todas aquelas pessoas ali no estádio, partilhando emoções diversas e pertinentes ao momento, têm mais em comum do que a gente pensa, quaisquer que sejam suas diferenças. Se até Milton precisa ser intrinsecamente humano, todos o somos. Lembrar disso, hoje em dia, é demasiadamente importante.

Obrigada, Bituca. Mais uma vez, obrigada!

E viva a democracia!

8 respostas

  1. Milton Nascimento é o que há de mais belo em todas as artes. É poesia cantada, a vida celebrada em versos.

    Felizes somos nós que pudemos dividir o mesmo mundo que ele, mais ainda são aqueles que puderam ouvir suas músicas.

  2. Larissa Reis sendo tão suavemente essa veia que pulsa com a intensidade de uma lava de vulcão.
    Eu quase estive no Mineirão, enquanto sorvia suas palavras, escritas com tanta alma e coração.
    É mesmo inevitável pensar na finitude da vida vez em quando. Sobretudo nos dias maravilhosos, quando algo extraordinário nos rouba o fôlego; ou nos dias sombrios, nos quais a despedida de algo ou alguém nos espreita.
    No entanto, Bituca- mesmo sendo mortal em sua condição humana -, é um “highlander” em sua arte. E, assim, mesmo depois que seu corpo físico deixar a Terra… Milton permanecerá eterno em cada acorde perfeito de “Nascente”, em cada “Fé Cega, faça amolada”. E eu de fato me sinto impelida a indagar “Quem sabe ISSO quer dizer amor”.
    Somos sementes, Lari. Mesmo nós, os mortais. E Bituca seguirá eternamente germinando em “flor e suor, em cada dose forte e lenta… dessa gente que ri quando deve chorar. E não vive, apenas aguenta.

  3. Que lindo Lari!
    Quanta sensibilidade nas suas palavras. Já tive a felicidade de assistir dois shows do Milton e em chorei e cantei bastante.
    Uma honra e privilégio poder tê-lo visto ao vivo e a cores…
    Parabéns pela nao-resenha!

  4. Belo texto, digno do homenageado Bituca que nos deixa um legado musical ímpar. A sensibilidade de Larissa, somada à história de vida do Milton, me deixam deveras emocionado. Parabéns, Larissa. Abraços ao seu genitor,e meu grande amigo ,Antônio da Matta.

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