Zé Ramalho e eu, estrangeira na minha própria terra

Se você não chegou ao Yellow hoje, talvez se lembre de já ter lido por aqui que eu não sou muito ligada à música brasileira. Pois é, eu menti. A verdade é que eu não tinha me dado conta do quanto eu conheço e, mais importante, gosto de muitos de nossos artistas.

Zé em 2008 | Foto: Silvio Tanaka

Zé Ramalho é um deles, figura entre os favoritos e nem sei se teria como ser diferente. Nascido em Brejo do Cruz, na Paraíba, José Ramalho Neto é, sem sombra de dúvida, um dos maiores artistas brasileiros de todos os tempos.

Antes de começar a compor, escrevia versos de cordel e se passeia por diferentes gêneros, indo do frevo ao blues rock como ninguém. Por um momento, a coragem de experimentar demais fez sua popularidade cair, ao menos, acredita-se que é isso que tenha acontecido lá nos meados da década de 1980. Essa coragem, porém, é algo que eu admiro mesmo quando dá errado ― assim, exalto também.

Zé Ramalho compõe e canta com a alma usando o tom baixo de sua voz inconfundível, e é por causa do que sua música me faz sentir que este post existe. Vem comigo?

Há meros devaneios tolos a me torturar

Se você tá se perguntando como eu pude não me dar conta do meu contato com a música brasileira, talvez eu explique isso depois. Por ora, preciso ao que me é mais urgente e falar dos devaneios que estão a me torturar ― e que, espero, não devem ser tão tolos assim.

Confesso que não estudei filosofia ou psicologia suficiente para isso. Nada do tipo. Mas acho que posso dizer sem medo que o sentimento de pertencimento é algo que todo mundo busca. Disseram que “homem nenhum é uma ilha” e que somos seres sociáveis, ainda que muitos de nós (os melhores, acredito) sejam introspectivos.

Assim, ainda que você seja como eu e prefira poucos e bons a muitos e não tão bons assim, é provável que você ainda prefira alguma conexão do que nenhuma conexão. Ao longo da vida, tentamos encontrar pontos que gerem identificação com pessoas, ideias e lugares.

Parece natural, por exemplo, que a gente se identifique com a própria família e com o próprio país. Nem sempre é assim, ao menos não cem-por-cento, e pode doer perceber e ter que encarar esse sentir-se não-pertencente ou até renegado por algo que deveria ser seu.

Quando eu me deixei levar pelo complexo de vira-lata mais de década atrás, eu insistia que não me sentia brasileira. É uma grande m**** isso da gente comprar a ideia do Brasil e do brasileiro como inferiores como se simplesmente pudesse escolher não fazer parte disso. Pleno 2021 e há que tenha nascido e vivido aqui a vida inteira, mas ainda se acha superior por ter descendência europeia.

Felizmente, pra mim, eu escapei dessa armadilha antes de chegar a esse nível de arrogância. Há alguns bons anos, eu comecei a perceber quanta coisa incrível o Brasil tem e o brasileiro pode ser. E assim, apesar de seguir não gostando de parte do que caracteriza o “popular” na cultura atual, eu fiz questão de me sentir mais brasileira do que nunca.

Seu moço, eu venho de longe

Depois que eu abri os olhos para a existência de um Brasil que eu gostava, apesar de todos os pesares, eu pude assumir que gostava daqui. Comecei a reparar que a gente tem com o que é “nosso” uma relação muito parecida com a que a gente tem com a gente mesmo.

Sabe quando uma pessoa apaixonada diz para outra “eu queria que você pudesse se ver como eu te vejo”? É que tendemos a ser muito exigentes e até cruéis conosco. Lembro de ter conversado disso com um amigo justamente para dizer que precisamos ser mais amigos de nós mesmos para que possamos ser mais compreensivos e gentis.

Não me recordo bem das circunstâncias, mas lembro de quando outro amigo veio comentar que, com frequência, via estrangeiros falando bem do Brasil. Sim, a gente sabe que a maioria dessas pessoas não conhece a realidade tão de perto, mas os elogios pareciam sinceros e bons. Digo bons porque não eram relacionados à beleza das mulheres “tipo exportação” made in Brazil.

Ninguém gosta de ouvir outra pessoa falando mal do que é nosso, mas e quando fala bem? Estrangeiros à parte, comecei a prestar atenção no que pessoas ao meu redor ou que eu podia acessar de alguma forma destacavam sobre o país, a cultura, o povo ou os povos, para ser mais correta.

O resultado de tudo isso é que, depois de fazer questão de me sentir brasileira, o senso de pertencimento que eu tanto buscava estava aí. Sinceramente, ninguém se identifica cem-por-cento com nada. Eu, por exemplo, sigo abominando o famigerado jeitinho brasileiro na maior parte do tempo (risos).

Acho absolutamente satisfatório ouvir Zé Ramalho ― você achou que eu já tinha me esquecido de falar dele, né? ― e pensar “esse cara e eu somos fruto da mesma terra”. Há famosos e ainda mais anônimos incríveis por aqui e escolhi acreditar que são maioria, ainda que às vezes pareça que não.

Atualmente, parece que não.

Não voam, nem se pode flutuar

A essa altura, vale um aviso amigável caso você não tenha familiaridade com as músicas do Zé. Os subtítulos do texto são trechos de diferentes canções e deixei neles os links para que você possa ouvir.

O povo foge da ignorância
Apesar de viver tão perto dela
E sonham com os melhores tempos idos

Hoje em dia, eu tenho me sentindo estrangeira na minha própria terra. É porque, apesar de reconhecer o solo quando ando com os pés descalços ou de sentir o cheiro de “casa” quando fecho os olhos e respiro a brisa fresca das manhãs, o que tem se destacado por aí não me pertence. Eu não me identifico.

Me sinto na iminência de precisar agir para recuperar o que é meu ― e acredite, estou pronta desde já. Essa vontade, que também é coragem, não é resposta ao medo e sim à indignação. Sente essa indignação quem se reconhece fruto dessa terra desde sempre e quem percorreu uma estrada torta para se entender parte desse pedaço de mundo.

Sabe, eu nunca fui muito boa em eleger favoritos, embora tenha concluído com muita facilidade que Zé Ramalho está entre os meus. Uma música? Uma só? Não consigo escolher. A esse ponto da vida, porém, não importa qual eu escute porque o resultado é o mesmo: a saudade da minha terra e de não me sentir estrangeira por aqui.

Tenho amizades que moram fora do país e que não fazem ideia de quando ou se vão voltar. Todas elas já me relataram sentir o peso de ser imigrante e a falta que tantas coisas fazem, inclusive o senso de pertencimento. Demora muito para desenvolver esse senso quando você passa a se cercar de uma cultura totalmente diferente.

Eu nunca morei fora; não até agora. Porém, arrisco dizer que sinto um peso semelhante hoje. Tem gente que, morando fora, faz o possível para se integrar à cultura local e essa deve ser a melhor estratégia. Aqui, para mim, a “cultura local” nada mais é do que uma invasão à qual eu não quero me acostumar, não quero pertencer.

Quero recuperar o que é meu com a mesma energia que minha amiga que ama heavy metal dança em casa quando coloca um axé, pagode ou funk brasileiro para tocar quando sente saudades da terra que está a dez mil quilômetros de distância.

Há outros artistas que me despertam esse sentimento. Milton Nascimento, Gilberto Gil, Chico Buarque e Elis Regina estão entre eles. Nenhum é como Zé Ramalho, entretanto. Sabe-se lá por que, é ele quem escancara melhor essa lonjura toda que relatei aqui.

Se tem algo bom em tudo isso? Talvez tenha. Minha escrita quase sempre surge do desconforto. Talvez, toda essa saudade da minha terra me faça atualizar o blog mais vezes, mas eu jamais diria isso em tom de promessa.

Para encerrar, eu deveria sugerir que você comentasse algo, talvez me dizendo se também já se sentiu uma pessoa estrangeira por aqui ou se gosta de Zé Ramalho. É que faz tanto tempo que nem sei se alguém ainda vem por aqui, então finalizamos assim.

2 respostas

  1. Eu conheci o Blog em 2020, e que surpresa boa ver que tem post novo depois de uma pausa. São tantas conexões, Lari… Você bem sabe: elas começaram no Inumeráveis, mas depois eu lancei uma música e descobri que você tinha esse site. E tudo fez sentido! Kkkkk agora ainda mais, porque eu amo Zé Ramalho. No último feriado arrisquei tocar Chão de Giz num pianinho virtual, enquanto cantava. Aquela letra me é uma das coisas mais preciosas, com uma riqueza de interpretações possíveis que chego a me perder sem querer, só pra querer dar play de novo.

    São também essas coisas, as conexões, que reascendem sempre o meu amor pelo Brasil. Talvez a gente não consiga mais resgatar o verde nas nossas cores favoritas, e talvez ele nem mesmo possa ser visto mais na riqueza que é nossa flora. Mas há algo que é incondicional como este restinho de amor crescente: a arte, que do frevo ao blues rock, é imortal e contará sempre a nossa história. Por isso que ouví-la nos conforta tanto, para além do entretenimento sonoro, e por isso que a gente acaba descolonizando o olhar também. Por influência dela.

    Que a gente sempre possa resistir ao lado de uma boa playlist, é o que desejo.

    1. Concordo com você, a letra de Chão de Giz também me é uma das coisas mais preciosas! Adorei sua reflexão sobre a arte que nos faz descolonizar o olhar; eu precisava muito disso e demorei a perceber que só faltava eu permitir. Assim, ainda que a gente não recupere o mesmo tom de verdade, tudo isso há de ser nosso outra vez. Resistiremos, com boas playlists e com seu pianinho virtual <3

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