Nina Simone: Uma vida de talento e tormento

Nina Simone precisava viver em um mundo que a permitisse ser quem ela realmente era. E ela viveu tão honestamente quanto pode

Feeling Good é uma das minhas músicas favoritas da vida. A canção foi escrita por Anthony Newley e Leslie Bricusse e sua intérprete mais famosa foi Eunice Kathleen Waymon, mundialmente conhecida como Nina Simone.

Recentemente, decidir assistir com atenção ao documentário What happened Miss Simone?, um original da Netflix lançado em 2015. Do princípio ao fim da uma hora e quarenta e um minutos de duração, uma pergunta martelou em minha mente: por que Feeling Good se encaixa tão perfeitamente à Nina Simone?

A resposta vem fácil à mente, ainda que seja mais complexa do que possa parecer: talento. Isso e a capacidade de se sentir livre no palco onde, por ocasiões imprescindíveis à sua existência, Miss Simone pode ser feliz.

Quem foi Nina Simone?

Em 21 de fevereiro de 1933, em Tyron, na Carolina do Norte (EUA), nasceu Eunice Kathleen Waymon. A jovem cresceu em uma sociedade ainda divida entre negros e brancos (me pergunto agora se essa divisão algum dia, de fato, acabou).

Eunice começou a tocar piano aos 4 anos de idade. Certa vez, após uma singela apresentação, chamou a atenção da patroa de sua mãe e de outra senhora, que era professora de piano. A jovem foi chamada a fazer aulas e, para tanto, precisava atravessar os limites que separavam o seu povo dos brancos.

O sonho de Eunice se formou gradualmente: ser a primeira pianista clássica negra dos Estados Unidos. Empenho e qualidade não faltaram, mas os reveses vieram. Aos 19, sua família já havia transformado a vida para segui-la, mas Eunice foi rejeitada pelo Instituto Curtis, um renomado conservatório na Filadélfia, onde esperava estudar.

Da recusa surgiu a necessidade de achar uma forma de ganhar dinheiro e ajudar a família a sobreviver. Eunice conseguiu emprego para tocar e cantar em bares madrugada afora e, temendo que a família soubesse que ela estava tocando outras músicas senão a clássica, mudou de nome.

Do sonho interrompido, nasceu Nina Simone. Um talento grande demais para permanecer às escondidas na penumbra de um piano bar. Dali em diante, ela viveria uma vida muito, muito intensa. Conturbada por demais e tão brilhante quanto, ou mais.

Nina Simone foi pianista e cantora de jazz, blues, soul. Compositora e ativista pelos direitos civis dos negros nos Estados Unidos. Deixou esse mundo em 21 de abril de 2003. E, desde antes de sua partida e até quando a história permitir, foi e será uma lenda.

Por que estamos falando de Nina Simone aqui?

Talvez, o curioso seja que eu já tenha falado de What Happened Miss Simone? aqui, no post Nina Simone: Documentário e música, publicado em 2015. O fato de estar no mesmo Yellow tratando do mesmo assunto deve indicar que há mesmo uma ou várias razões para estarmos falando de Nina Simone.

Nina foi alguém que precisava viver em um mundo que a permitisse ser quem ela realmente era. E ela viveu tão honestamente quanto pode. O mundo não estava pronto para ela e talvez nunca estivesse.

Além do talento, Nina Simone levou uma vida de tormentas. Apesar das tormentas, Nina entregou ao mundo o seu talento. “Tudo o que eu tinha foi sacrificado para a música”, disse ela certa vez. E nada mais justo que busquemos apreciar esse sacrifício.

Nos últimos tempos, o jazz é o som que tem me ajudado a relaxar. Conto com a ajuda de uma playlist desenvolvida por uma amiga que, além de Miss Simone, tem nomes como Frank Sinatra, Ella Fitzgerald, Etta James, John Coltrane, Billy Holliday e Miles Davis.

É o tipo de música que eu gosto de ouvir no escuro, enquanto bebo um vinho ou tomo um banho. Qualquer coisa que me ajude a desligar a mente e alguns sentidos para focar em outros, como a audição e a capacidade de sentir.

Quando você for ouvir, saiba que Nina Simone é um nome que inevitavelmente vem acompanhado da definição de soulful, “dotada de sentimentos profundos e muitas vezes tristes” ou, simplesmente, cheia de alma. Dedique-se a isso.

Miss Simone, depois de vencida a surpresa pela própria fama e passada a alegria de estar sempre no palco, era uma artista que parava de tocar para mandar alguém da platéia se sentar ou calar a boca.

Grosseiro? Pode ser que sim, mas me parece justo. Ainda que seja uma expectativa incompatível com a realidade atual, o que Nina queria era que os presentes reconhecessem o quão valioso é presenciar uma artista deixar sua alma no palco.

E porque eu gostaria de fazer vocês, leitores do Yellow, viver um pouco dessa sensação, é que estamos falando de Nina Simone aqui.

O talento e a tormenta de Nina Simone

“Eu preciso viver com Nina e isso é difícil”, disse Nina Simone sobre si mesma.

Eunice teve uma infância e adolescência solitária porque passava os dias dedicando-se às aulas de piano, afastada da vida social e saudável.

Mais adiante, em 1961, Nina casou-se com Andrew Stroud, um detetive da polícia que logo abandonou a carreira para agenciar a esposa. Com a ajuda dele, Miss Simone conseguiu muito em sua vida profissional e, também graças a ele, sofreu muito em sua vida pessoal.

Com o tempo, ela começou a se desgastar por fazer tantos shows e estar sempre afastada da filha do casal, Lisa Simone. Vivia na expectativa de falsas promessas feitas pelo marido e agente sobre a possibilidade de logo poder parar, diminuir o ritmo.

Andy era agressivo, violento e controlador. O documentário What Happend Miss Simone? revela que o marido chegou a estuprá-la e, por esse além de outros motivos, era alvo da raiva de Nina.

A família era vizinha de Malcon-X e Nina Simone se envolveu ativamente no movimento pelos direitos civis dos negros. Chegou a dizer a Martin Luther King Jr. que ‘não era não-violenta’, instigava a luta a qualquer custo e escrevia músicas que iam de encontro ao seu ativismo.

non violent

A carreira de Miss Simone foi afetada pelo conteúdo das músicas que ela escolhia tocar em seus shows e ela perdeu espaço nos programas de TV. Mais tarde, disse não se arrepender do ativismo, mas reconhecer que aquela fase a prejudicou de alguma forma.

[Eu não consigo falar sobre o ativismo em defesa dos direitos civis dos negros como seria interessante para este post e para que você entenda o porquê de sua importância também no contexto de Nina Simone. Fica, portanto, mais um bom motivo para que você assista ao documentário]

Nina Simone precisou se apresentar à base de remédios e deixou de ter, no palco, o sentimento de liberdade que um dia conheceu. As tormentas de sua vida pessoal dificilmente deram trégua e as dores e abusos que ela sofreu contribuíram para fazer dela uma abusadora também.

É difícil reconhecer que alguém que se admira, alguém de tanto talento, teve defeitos graves. O temperamento de Nina era difícil, agravado pelo transtorno bipolar. Fãs repreendidos, show abandonado, filha agredida repetidas vezes, falta de cuidado com si mesma. Tudo isso também foi resultado de quem Eunice se tornou.

Talento e tormentas fizeram de Nina Simone a artista incrível que ela foi. Alguém que, como sua própria filha disse, foi brilhante independente do que estava vivendo, independente da velhice.

Quando for ouvir Miss Simone, saiba que em suas canções e interpretações ela misturava toda a sua dor, seus lampejos de liberdade e alegria, seus anos de estudo de piano clássico, seu desejo e luta por igualdade, sua força e talento.

Em algum momento ainda no início de What Happened Miss Simone?, Nina explica que a liberdade é a ausência de medo. Um sentimento, como a paixão, não pode ser devidamente explicado. É preciso sentir e, quando se sente, se sabe.

A música de Nina Simone é como a liberdade.

Dois dias antes de morrer, Eunice Kathleen Waymon recebeu do Instituto Curtis — aquele mesmo que a rejeitara anos antes — um diploma honorário. Ao longo da carreira, foram mais de 15 indicações ao Grammy, além de sua introdução ao Hall da Fama do Grammy em 2000.

Com tudo isso, Miss Simone não deixou de acreditar que, caso tivesse interrompido o seu sonho de ser a primeira pianista clássica negra dos EUA, teria sido mais feliz. Uma suposição difícil de digerir e que demanda tanto silêncio e reflexão quanto o jazz que nos trouxe a este post.

Você já assistiu a What Happened Miss Simone? Gosta de Nina Simone? Conte-me tudo, não me esconda nada! 🙂

12 respostas

  1. Muito bom! Belo texto. Parabéns! Dá vontade de escutar jazz… Fiquei curioso com relação a tua playlist… Se puder indicar via Spotify, terei prazer em escutar. Acredito que será uma boa degustação para quem curte e quem quer conhecer mais sobre esse gênero musical.. Abraços!!

  2. Eu entendo Feeling Good como a dualidade em si. Uma letra que, se colocada em um ritmo elevado seria alegre, mas que, na interpretação de Nina Simone, carrega uma melancolia muito grande, quase um conformismo diante das tormentas, como você bem coloca, da sua vida pessoal. Belo texto.

    1. Nada é simples com Nina Simone, ainda que ela tenha tido a coragem de ser literal muitas vezes. Acho até que é essa dualidade em Feeling Good que a faz tão poderosa! A melancolia é um sentimento mais profundo do que a felicidade, na minha opinião. E se a música fosse “só” feliz, não causaria tanto impacto 🙂

      Obrigada pelo comentário, Jefferson!

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